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Carlos Bessa

EM CONCRETO

Começo pelo humor ou pelo gosto de associar ideias que, primeiro, se afiguram inconciliáveis e, portanto, distantes, dando, depois, lugar a uma transição repentina que defrauda a expectativa inicial e nos prepara para uma diferente percepção dessas mesmas ideias. E faço-o pelo modo como Rui Melo invoca, no título desta sua nova exposição, o duplo sentido de concreto, parodiando o significado comum do termo (real, palpável, sólido, objectivo) com o que ele tomou nas artes plásticas, por via do concretismo, ou seja, o de materialização visual de conceitos intelectuais através de formas visuais em movimento, pondo de lado a representação figurativa do real. Desde logo pelo salutar princípio de que a pintura também pode reflectir a vocação lúdica de desconstruir o que parece comummente aceite. E depois por entender que leva mais longe o jogo de baralhar incertezas, arquitectando um itinerário interior que plasma momentos particulares, indexados por vezes a cenários naturais, onde os gestos, os movimentos, as pequenas notas cromáticas narram (inclusive pelo modo caligráfico dos detalhes) múltiplos fluxos e refluxos – líquidos, magmáticos, aéreos – que sustêm um trajecto de breves mas intensos e luminosos instantes.


Servindo-se de uma paleta concisa e eficaz, que se expande radialmente num apuramento lúdico e lírico, Rui Melo evidencia habilidade para contrabalançar o estático e o dinâmico, através de uma gramática pessoal que particulariza paisagens e pontos de vistas, envolvendo-os numa iluminação encenada que conduz o olhar de quem vê até às bordas do abismo ou daquilo que fica, qual trecho emotivo, a percutir dentro do espectador. E o gravitar dessas incertas pegadas e dessas inquietações amplifica-se nas obras onde o branco se multiplica e expande, como se almejasse uma espécie de absoluto.


Os materiais (suportes e tintas) são, aqui, indissociáveis desse labor de exploração do inesperado, configurando um assombro afim do depois do derrame, quando ao excesso magmático sucede a tranquila e etérea suavidade do azul. Atente-se no cuidado com que em qualquer das obras se ambiciona o precário equilíbrio da tensão. Tensão entre o que se expande e o que se contrai, entre o excesso e a contenção. Duplicidade e equilíbrio sustentam, pois, uma espécie de mapeamento da leveza. Essa mesma que alguns experienciam diante das paisagens insulares, com as suas nuances próprias, num cúmulo de manchas e tons que se condensam e sedimentam, apurando um estratigrama íntimo que Rui Melo parece transcrever para os seus quadros, cristalizando neles um pouco do fulgor que nos oferece o mundo natural. Como se buscasse a ciência última de todas as coisas, que transbordam e vivificam, deixando testemunho individual de um instante, de um pormenor.

in: Catálogo “Em Concreto - Pintura de Rui Melo”- Edição SREC/DRaC/MAH 2015

Entrevista por Joana Mendes

"PINTURA ABSTRATA DESENHADA SOBRE CIMENTO"

Rui Melo é um veterano nas andanças das artes plásticas nos Açores. Tem obra espalhada, em quase todo o arquipélago e fora dele, ambicionando sempre a uma vida preenchida pela pintura. A propósito da sua mais recente colecção, chamada “Em Concreto” e patente na Sala do Capítulo do Museu de Angra do Heroísmo até meados de junho, falou ao Audiência Açores sobre influências artísticas, correntes da pintura e sobre a crua realidade dos constrangimentos para quem faz da Arte um modo de vida.


Que inspirações podemos encontrar nestes trabalhos?
Esta exposição vem na sequência de um trabalho que em tenho vindo a desenvolver há alguns anos. Interesso-me pela abstracção, pela cor, pela mancha por si só. Nestes trabalhos, especificamente, tenho usado, desde 2009, um material novo, pouco convencional na pintura e mais comum na construção civil – placas compósitas de madeira e cimento. Não sendo um material de pintura, achei interessante usá-las como suporte, assumindo a sua textura. Deixei muitas áreas na sua cor natural, intencionalmente. Daí, também, vem o nome da exposição, “Em Concreto”, uma referência ao termo inglês “concrete” e à palavra "concreto" usada no Brasil para cimento. Sendo uma exposição abstrata, esse contrassenso pareceu-me interessante. Há também, ainda que vagamente, uma referência ao Concretismo, enquanto movimento artístico, ainda que não pretenda enquadrar-se, de forma pura, nos seus preceitos. O título da exposição é, na verdade, um cruzamento de todas estas referências.


Relativamente à temática da exposição, o que podem encontrar os visitantes?
Quanto ao tema, as pessoas quando vêm estes trabalhos tendem a remeter o seu referente às minhas origens açorianas. Isso acontece de forma um pouco inconsciente. Não é algo que procure, ainda que não me incomode. O que me interessa são as manchas e as cores e a sua interação plástica. Percebo, contudo, que o facto de ter nascido nos Açores deixe uma marca forte nos meus trabalhos mas, existindo, é algo que surge naturalmente.  No meu ponto de vista, o importante é o caráter universalista que deve ser condição da verdadeira Arte, e que esta não seja corroída pelo pequeno regionalismo, seja ele qual for.

A nível artístico, que influências mais lhe tocam?
É difícil responder, na medida em que não tenho um pintor ou uma corrente específicas que me influenciem. Admiro, porém,  desde pintores anteriores ao Renascimento até artistas contemporâneos. Gosto de vários estilos e de várias épocas, cada um deles no seu tempo. Apesar disso, tenho uma maneira de pintar inevitavelmente ligada à contemporaneidade e à abstração. Quanto a pintores marcantes na minha vida, posso nomear de Caravaggio a [Piet] Mondrian, passando por muito outros, a lista seria longa. Dois nomes tão distantes no tempo e no modo de entender a pintura que demonstram a minha incapacidade de identificar uma corrente influenciadora do meu trabalho.

Quanto aos trabalhos expostos nesta exposição, foram criados com o intuito de formarem um conjunto?
Esta exposição começou a ser desenvolvida em 2013. Foi proposta no final desse ano ao Museu de Angra e o trabalho foi-se desenvolvendo naturalmente a partir daí. O último quadro foi terminado já em 2015. Paralelamente, existe na exposição também um trabalho de 2009 que foi adquirido pelo Museu em 2010. Aproveitei o facto de já cá estar para o juntar à exposição, já que está muito relacionado com os restantes em termos de expressão. Nesse caso,  foi utilizada uma tela azul: situação que tenho vindo a exprimentar e que passa pela utilização de fundos "não neutros". Assim, este acabou por ser um pouco o princípio desta história, tendo gerado os restantes.

Quanto ao seu percurso, o que o trouxe até aqui? É artista de profissão?
A minha formação é de Artes Plásticas - Pintura, tendo feito a licenciatura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Exerço a docência, como professor contratado, desde 2003, na área de Artes Visuais no ensino básico e secundário. Não posso, por isso, dizer que viva só da arte. Terminei o curso em 2002, mas já fazia pintura assumidamente desde muito novo. Para mim, desde cedo ficou claro o que queria fazer. Nunca sequer me preocupei com questões laborais porque sabia que era aquilo que tinha que acontecer. Trabalhei, também em design gráfico para diversas instituições, em cenografia, com grupos de teatro como o Alpendre e o Pedra Mó. Considero, portanto, que a minha profissão são as Artes Plásticas, incluindo nelas o ensino.

Gostaria de, um dia, viver da sua arte? É um daqueles sonhos inalcansáveis?
Tenho consciência de que isso não será propriamente fácil. Vivemos - para piorar o panorama - uma crise económica que torna a venda de peças mais difícil. É algo que compreendo. Quando há tanta gente em grandes dificuldades para, sequer, chegar ao fim do mês, a arte não é nem pode ser, com certeza, uma prioridade. Esse é um "preço" que se paga por se teimar em viver em Portugal. Comprar arte é quase impossível ao cidadão comum, tendo em conta os baixíssimos rendimentos da maioria das pessoas, especificamente, nos Açores. Para mais e infelizmente, vivemos tempos de retrocesso civilizacional e esses tendem a ser hostis à Arte, à Ciência e ao Humanismo de forma geral.
Quanto ao meu percurso particular, apesar de tudo, ainda que não possa viver só da pintura, considero-me privilegiado pela estima com que sou tratado pelas pessoas que têm acompanhado o meu percurso desde há muito e por algum apoio institucional que tenho recebido pontualmente, quando são apresentados projetos. No caso específico desta exposição, houve o patrocínio da Direção Regional da Cultura.

in: Jornal “AUDIÊNCIA AÇORES”- 28 de março de 2015
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